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"- Já disse que não, não
insista!"
Os homens são tão tolos que têm
dificuldade para dizer não. Todos sabem que esse procedimento agrada, e muito,
aos que se julgam espertos. Enquanto titubeamos para negar as coisas, eles, os
espertos, não pestanejam para alcançar vantagens sobre nós. Veja só:
Carlinhos estava completando cinco aninhos
e a festa reunira toda a família de Carlos e Beth. Era um sábado agradável e
como era festa de criança começara as comemorações às 17h, mas só atingiu o
auge às 18h e logo estariam partindo o bolo uma vez que às 19h os pais dos
amiguinhos de Carlinhos viriam buscá-los.
Para os adultos a festa ficou boa mesmo
quando os convidados infantis e os parentes mais afastados se foram. Ficou o
grupo habitual com exceção de Raul, primo de Beth, que morava no interior do estado.
Mas ele era um dos mais divertidos convidados. Extrovertido e brincalhão
tornara-se o centro das atenções com suas piadas e implicâncias humorísticas.
Não sei vocês já perceberam, mas grande
parte dos humoristas precisa de um "cristo". É isso mesmo, ela pega
um dos participantes, coloca na berlinda e vai constrangendo-o enquanto arranca
risos dos outros que, insensíveis, fingem não perceber o desconforto imposto ao
eleito. Qualquer detalhe serve ao "humorista" para fazer rir sua
platéia enquanto ressalta a gordura, magreza, feiúra, altura (ou falta dela) ou
qualquer outro motivo ou defeito que o "eleito" para o
"sacrifício" apresente.
Raul era um destes humoristas e esticou a
noite e a festa até a madrugada. Quando o penúltimo parente se foi, sem qualquer
constrangimento, sentou-se ao lado de Beth e começou sua ladainha:
- Prima, estou desesperado. Fui demitido
há 2 meses e até agora não consegui nenhum emprego. Em Cantagalo não existe
qualquer oportunidade. Posso me hospedar aqui por uns dias para buscar um
emprego aqui na capital?
Beth ficou constrangida diante daquele
pedido. Em imperceptíveis instantes conseguiu avaliar toda situação. A casa era
pequena. Com a chegada do filho o único cômodo grande do imóvel de sala, quarto
e cozinho fora sacrificado e um canto da sala fora transformado em quarto do
filho deixando a sala mínima. O quintal era grande mas a casa era alugada e ela
não podia fazer puxadinhos...
- Raul, vou ter que conversar com o Carlos
e depois te dou uma resposta.
- Depois como? Eu nem tenho dinheiro para
ir embora!
Mais uma vez os pensamentos se agigantaram
e aceleraram na cabeça de Beth. Estava diante de um sério impasse. A festa
havia exigido gastos indesejáveis, mas indispensáveis. O orçamento estava tão
quebrado que até o início do mês seguinte ia ser um transtorno econômico para
Carlos conciliar os gastos de transporte e alimentação. Não ia ter coragem para
conversar com o marido àquela hora e não tinha dinheiro para poder mandar,
educadamente, o Raul embora. Acatou. Sentia-se usada, forçada a acatar aquela
presença despropositada e fora de época, mas não via saída.
Carlos, estupefato, viu Beth pegar
travesseiro e lençol e disponibilizar para Raul no sofá da sala. Nada comentou,
mas ela conhecia seus olhares melhor do que ninguém e sabia que teria problemas
maiores ainda naquela madrugada.
Todos estavam tomados pelo sono e pelo
cansaço provocado pela festa e ela tentou fugir do marido tomando um banho
demorado.
Estava a 10 minutos no banho e o Raul
entrou no banheiro e levantando a tampa começou a se utilizar do vaso sanitário
sem ligar para sua presença dentro do box com vidro transparente.
Beth morava numa casa simples, de um casal
com filho ainda pequeno e o detalhe da porta não estar trancando não incomodava
a ninguém. O vidro fumê para o box era quase o dobro do preço. E isso criou as
condições para aquele inusitado fato.
Não bastasse isso Raul, enquanto urinava
com o short arriado até os joelhos, elogiava a conservação de seu corpo e a
beleza que ele alcançara agora que ela era uma balzaquiana. Melhor do que na
sua infância e juventude.
Claro que aquele raro vozerio másculo em
plena madrugada despertou o já irritado Carlos que a tudo escutando fez questão
de, pela sua presença na porta do banheiro, registrar que estava presente e atento
aos fatos que se desenrolavam em sua casa.
Raul se lixou para o que ele pudesse estar
pensando e balançando sua masculinidade no afã de retirar-lhe os pequenos
pingos restantes começou a, desacanhadamente, conversar com Carlos.
- Primo, a Beth já te contou que vou ficar
aqui por uns dias até conseguir um emprego? – e sem permitir se deixar
interromper, se recompôs e foi saindo com grande naturalidade do banheiro e
voltando para a sala enquanto matraqueava em plena madrugada:
– Em Cantagalo já
tentei de tudo sem qualquer sucesso e por isso vim para a capital. Nesse enorme
Rio de Janeiro emprego é o que não deve faltar, acho que consigo um muito bem
remunerado ainda esta semana. - E prosseguiu sem qualquer constrangimento.
- Já amanhã começo a procurar um pelos
jornais para na segunda-feira, se Deus quiser, estar já empregado!
- Me passa a toalha Carlos. – pediu Beth.
- Porque o acanhamento? O vidro é
transparente e seu primo já mostrou conhecer bem e ter reparado detalhadamente
seu corpo enquanto mijava. Eu vou é me deitar já que nem na sala vou poder
dormir.
De cara amarrada foi deitar e assim não
viu que Raul voltou ao banheiro e enquanto Beth tentava esconder na toalha seu corpo já
desvendado; ele ria e perguntava baixinho:
- Por que será que ele ficou tão irritado?
Será que ele quer esse corpo maravilhoso só para ele?
Raul não esperou respostas, rápido como
entrara saiu do banheiro, rindo baixinho e se recolheu em seu sofá apagando a
luz.
Noite mal dormida, muita discussão e a
decisão para que Beth se livrasse do primo ainda no domingo. Ambos concordaram
e a ela – prima – cabia tal façanha.
Pela manhã Raul, só de short, deixando a
sala uma bagunça, entra na cozinha onde o casal toma seu café da manhã, com
Beth recatadamente composta e pergunta, descaradamente ao Carlos:
- E ai primo? Dormiu bem? Já comprou os
principais jornais? Tenho que ler os classificados para achar um bom emprego,
mas não tenho sequer um centavo.
O casal trocou olhares e a cumplicidade
deles era tanta que apenas pelo olhar Carlos perguntava a Beth como seu primo
iria embora, se ele é que tinha, além de comprar os jornais, ainda que pagar a
passagem do intrometido.
Acanhada Beth abaixou a cabeça. Enquanto
Carlos se levantava e Raul ocupava seu lugar pedindo que ela colocasse seu café
da manhã. Era abuso demais e Carlos estava cada vez mais irritado.
Assim que Carlos fechou a porta do quarto atrás de
si Raul levantou-se cautelosamente e sem qualquer ruído abraçou sua prima por
trás beijando-lhe o pescoço. Quando ela se volta para contestar aqueles atos
ele tenta roubar-lhe um beijo na boca e Carlinhos, da porta da cozinha, a tudo
assiste e assusta aos dois com sua pergunta:
- Tio, você também namora a minha mãe?
Desconcertado o “tio” ainda tenta fazer
piada com o pijama de bichinhos do sobrinho.
- Esse bichinhos vão morder você à noite
e...
- SAIA AGORA! – Interrompeu Beth.
O olhar espantado de Raul se transformou
em um olhar de coitadinho, de arrependido e de pidão irresistível. (Que olhar é
esse? É o famoso olhar do "gato de
botas", no filme Shrek).
Breve silêncio e um grito ainda mais alto:
- AGORA!
Carlos, que estava em seu quarto deixando
a “prima” resolver com Raul resolveu intervir em apoio à esposa e saiu do
quarto calado; e calado foi até a cozinha forçando sua passagem deslocando Raul
que estava no meio do seu caminho.
Raul agora, vendo desmoronar já consolidada sua posição
de coitadinho, apela às lágrimas e aos resmungos sobre as
infelicidades de toda sua vida.
Beth já estava solidarizando-se com Raul,
mas Carlos estava decidido.
- Que parte o “saia agora” você não entendeu?
Do choro comovente à revolta foi um
instante apenas.
- Vocês vão jogar-me na rua sabendo que
não tenho um centavo sequer?
- Essa deveria ter sido sua primeira
preocupação, antes mesmo de vir para uma festa. Antes de decidir por nós que
iríamos ajudá-lo incondicionalmente. Você poderia nos ter consultado com um simples
telefonema.
- Vocês diriam que não, seria um rotundo
NÃO! Vocês sempre foram muito mesquinhos e egoístas.
Carlos não pretendia cair na armadilha de
Raul e ficar discutindo o que já estava decidido.
- Se você não entendeu posso explicar de
muitas formas o “saia daqui agora”, e você não gostaria de nenhuma.
Raul estava perdido. Resolveu ir embora,
mas não queria sair por baixo. Arrumou-se rapidamente e antes de sair declarou
taxativamente, já na porta:
- Vocês acham mesmo que eu sou um idiota?
Que iria confiar em vocês? Guardei no meu sapato R$ 500,00 para caso vocês
fossem ingratos com a família...
- Saia agora, não vou repetir, vou agir.
Surpreso com a interrupção inesperada Raul
saiu gritando impropérios tentando atrair, com acusações diversas, a atenção de
toda vizinhança, mas correu assim que em uma atitude decidida Celso saiu para a
calçada.
Conclusões ficam com você, leitor...
Mas não pense que poderia ser diferente
com você. O esperto, o abusado, está em toda a família e sempre é “o coitadinho”!
Borges C.
(Toca de Lobo)
Contador de Histórias
borges.rj@outlook.com