quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A inesperada queda de um ídolo


Serginho fez amizade rápida com Abdul, filho de um funcionário de seu pai, afinal a diferença de idade não chegava há um ano. Isso seria fundamental, pois estavam viajando e Abdul sabia falar um pouco da língua daquele pessoal do Golfo Pérsico.
Estavam em um hotel impressionante, enorme, lindo, muito bem equipado com salão de jogos, quadras, piscinas. Mas Abdul fizera amizade com Sadan e explorar aquele país soava para eles como uma grande aventura.
Vestiram-se como as crianças nativas para não chamar a atenção e verem suas aventuras interrompidas e logo depois do almoço foram encontrar com o novo amigo. Iriam assistir ao jogo do Barcelona e depois jogariam bola com os amigos de Sadan.
Quanto mais se conheciam mais Serginho invejava o amigo que tinha e fazia tudo que queria.
Sadan usava uma camisa e um short do Barcelona, e uma chuteira. Seu tio lhe dera de presente há alguns dias. E, durante o jogo, conversavam sempre com a intermediação de Abdul que era a importância em pessoa. Afinal ele era nosso tradutor e intérprete oficial. Sandan tinha só que falar um pouco mais devagar.
- Você vai jogar bola com essa roupa? Não tem medo que estrague?
Sadan rindo responde:
- É a única que eu tenho para jogar bola. Não vou usar nem minha roupa de sair nem a de trabalhar - falou rindo e cheio de pose o menino uniformizado como um jogador do Barcelona.
- Mas você já foi à aula hoje? - era Abdul expondo toda sua curiosidade.
- Escola nada. Eu já trabalho, ganho mais dinheiro que muito adulto. Estudar para quê. Quero é ter meu próprio negócio como meu tio. - responde Sadan.
- Meu pai também tem uma empresa - interrompeu Serginho, achando graça do som de sua fala traduzida por Abdul - Logo eu também vou a ter a minha e também vou parar de estudar. É muito chato.
- Você trabalha para o seu tio?
- Que nada. Eu trabalho com o meu tio, mas por conta própria. Ele é um dos meus melhores compradores, mas só trabalha com reciclagem de metais e não compra os demais produtos recicláveis.
Abdul estava espantado, aquele menino um pouco mais velho que eles já trabalhava, por conta própria, no ramo da reciclagem preservando o meio ambiente, mas percebeu que não saberia falar a palavra "ambiente" e nem sabia se meio ambiente naquela região significava a mesma coisa que aqui no Brasil. Sendo assim preferiu ficar calado.
A sala onde estavam devia ter mais de 20 crianças e alguns adultos e quando o Barcelona fez seu primeiro gol a comemoração foi ensurdecedora. Sadan já até mostrava o que sabia fazer com uma bola - como jogava bem! - fazia embaixadas jogando a bola para trás e para frente usando a cabeça, calcanhares, pés, joelhos e peito.
No intervalo a conversa continuou:
- Seus pais brigam muito com você, Sadan?
- Que nada. Meu pai já morreu e eu sou o homem da casa, sustento minha mãe e meus irmãos e ela me respeita e não briga comigo por nada desse mundo.
- Então - completou Serginho com tradução simultânea de Abdul - é por isso que você é assim magrinho.
- Magrinho, eu!? Magrinho nada, eu já uso até as roupas que eram do meu pai. Agora vocês sim, são bem gordinhos. São até barrigudos.
O comentário de Sadan não agradou, eles insistiam em dizer que não eram gordos, eram musculosos, e o debate ia acabou em queda de braços para ver quem era mais forte. Para a sorte dos estrangeiros o jogo recomeçou. O "magrinho" era forte de doer, ganhou Serginho uma vez, duas vezes Abdul e se o jogo não começa ia ganhar dos dois de enfiada.
- O Barcelona ganhou por 2 X 0 e o segundo gol foi no final do jogo deixando a garotada atiçada. Mas não houve qualquer conflito entre os três amigos. Jogaram pelo mesmo time, ganharam de 5 X 2 e Sadan era, sem dúvida, o melhor jogador em campo.
Estava tarde, os meninos se despediram e Sadan ensinou a eles a chegar onde trabalhava. Ficava a quatro quarteirões dali, no fim de uma rua. Marcaram de se encontrar na hora do almoço. Sadan iria almoçar com eles no hotel.
A aventura havia sido um sucesso e ninguém nem desconfiara. Sadan passou a ser o ídolo dos amigos. Já trabalhava por conta própria. Tinha seu próprio negócio de reciclagem, ninguém brigava ou mandava nele, e nada, nada de escola!
Na tarde seguinte uma confusão na portaria do hotel chamou a atenção dos meninos que correndo de curiosidade foram ver o que acontecia.
Sadan, todo sujo, brigava com o porteiro que não queria deixar um mendigo entrar no hotel. A intervenção de Abdul deixou o porteiro perplexo. Serginho se manteve em apoio ao amigo, mas calado. Não entendia uma única palavra de toda aquela discussão.
De repente Serginho teve uma idéia brilhante. Correu ao seu quarto, fez questão de pegar uma de suas melhores roupas, emprestou ao Sadan que saiu e em meia hora voltou todo arrumado e de banho tomado sendo admitido para almoçar no hotel muito a contragosto de todos que ali trabalhavam.
Almoçaram, riram, brincaram por toda parte e já quase no final do dia, com Serginho quebrando a relutância e fazendo questão que o importante amigo aceitasse sua roupa como um presente, resolveram ir conhecer o trabalho de Sadan.
Desceram as quatro quadras, entraram na rua longa e curva e logo estavam diante de um lixão onde uma fila de caminhões despejava lixo doméstico, industrial, hospitalar e até sanitário.
Sadan trocou de roupa, colocou o único item ainda bom para uso, que era sua bota, bem maior do que seu pé, e orgulhoso foi mostrar aos amigos como era seu trabalho enfiando-se no meio do lixo e dali recolhendo todo tipo de material vendável.
O ídolo foi por terra sem perceber. Ele estava feliz mostrando aos amigos como era trabalhador, como se virava sozinho, como conseguia uns US$ 5,00 por dia para não deixar sua mãe e seus 5 irmãos passarem fome apesar de viverem na miséria. Para economizar ele só ia para casa na noite de sexta-feira e domingo bem cedo já estava de volta porque o lixo dos domingos são mais fatos.
Só então souberam que seu nome era homenagem ao ditador que conseguira colocar na miséria um povo rico em petróleo. Ele estava no Iraque, país que historicamente passou por muitas guerras desde a antiguidade e até nesse nosso novo século!

Borges C.
(Toca de Lobo)
Contador de Histórias

borges.rj@outlook.com

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Flamenguista de touca ninja



Em pleno meio-dia de uma sexta-feira me vi seguida por um homem de touca ninja listrada de vermelho e azul. Vestia calça jeans, camisa do flamengo e ainda óculos escuros. Era a figura mais notada apesar do movimento dos alunos que, como eu, saíam da escola.
Ele me seguia, mas o horário, o ambiente favorável e a espalhafatosa combinação de trajes não me permitiram temê-lo e logo ele se juntava a mim e buscava, com uma voz forçada e rouca, puxar assunto comigo.
- Sozinha na saída da escola? Cadê seu namorado? Uma menina maravilhosa como você de ter muitos namorados!
O tema e a forma de abordagem aguçaram ainda mais minha curiosidade sobre aquela inusitada figura e resolvi dar "trela".
- Se você está querendo saber, tenho namorado sim. Um só, tolo e muito infantil, mas só tenho um.
A voz rouca ficou um pouco mais aguda.
- Tolo? Infantil? Se seu namorado é tolo e infantil porque você não troca ele por mim?
- Para falar a verdade só hoje percebi que poderia ser ainda pior. Assim que lhe vi, apesar de não saber sua idade, não consegui deixar de comparar você com ele, afinal ele tem mais ou menos a mesma altura e porte físico que você, mas acredite, ele consegue ser um pouco mais maduro, pelo menos eu acho.
- Se estou entendendo bem você considera seu namorado tolo e infantil porque você sai com outros caras e ele nem percebe.
- Você está pensando que tem alguma chance de eu trair meu namorado com você pode "tirar o cavalinho da chuva". Tolo por tolo fico com o meu tolinho que me parece mais inteligente que você.
- Não estou falando de mim e sim dos outros "carinhas" da escola. Tem colega sua que te chama de "cachorra" e se você fosse fiel ao namorado tolinho não haveria motivo para isso.
Nesse instante me calei. O alerta que havia se ligado logo a princípio, com essas últimas frases, entrou em seu estágio máximo ainda mais quando o personagem exótico completou.
- Viu só? Eu não sou adivinho, mas acertei em cheio! Seu tolinho vive cheio de "chifrinhos"!
- Para falar a verdade não, eu, por gostar dele, nem chego a permitir nenhuma tentativa desta espécie. Você mesmo está tentando sem encontrar qualquer oportunidade. Algumas colegas tratam todas as meninas de “cachorra”, “safada”, pura falta de vocabulário. Mas...
- Sempre tem um "mas". Mas, o quê?
- Tenho percebido que esse meu gostar é unilateral. Confio nele cegamente. Mesmo quando ele falta a algum de nossos encontros aguardo sua justificativa e não questiono exceto quando ele falta para jogar bola ou cartas, acho que eu valho mais que isso.
- Ele é mesmo um tolo. Deixar de estar com você para jogar qualquer coisa é uma grande tolice.
Eu tinha que confirmar minhas suspeitas e mudei o rumo daquela conversa.
- Apesar de gostar dele detesto seu ciúme. Isso para mim é falta de confiança e acaba que esse procedimento me leva a compará-lo com alguns colegas e ele sai sempre perdendo.
- Como assim ele sai perdendo?
A voz rouca desta vez saiu precipitada e um tanto quanto trêmula. O que isso poderia significar?
Marcio, um colega da minha sala, talvez por causa de meu espalhafatoso acompanhante, andava lentamente mantendo o mesmo ritmo meu. E ele anda sempre tão apressado. Resolvi usá-lo.
- O Marcio, por exemplo – falei apontando para ele. É um rapaz másculo, alto, forte, cheiroso, insinuante, inteligente - eu falava e procurava mais adjetivos para personalizar no Márcio - carinhoso, afetivo - eu falava mais devagar para poder pensar - responsável, romântico...
Eu estava ficando preocupada. Márcio diminuíra o passo e certamente o fez para ouvir melhor os elogios que eu tecia sobre ele. O que é pior, eu estava me dando conta que não estava mentindo e que aquele carinha tinha tudo que qualquer mulher poderia desejar de um namorado e naquele momento ele passou a me atrair.
Um mascarado raivoso me interrompeu.
- Se ele é assim tão maravilhoso porque você não namora ele ao invés de um cara - falou então desdenhando e frisando as palavras - tão tolinho?
Não restavam mais dúvidas. Era hora do ultimato.
- Porque eu acreditava que meu namorado um dia iria perceber-se amado e desejado por mim. E mais, iria reconhecer que era respeitado. Parece que ele nunca vai descobrir que o ciumento um dia terá que optar entre a pessoa que ama e o seu ciúme. Que é impossível manter os dois juntos.
- Como você pode dizer que ama e respeita um cara e elogiar tanto assim outro?
- Porque meu amor por ele não tem o poder de me fazer cega nem de remover as qualidades dos outros homens do mundo. E, o que é pior, meu amor não foi capaz de fazê-lo confiar mais em si mesmo e não consegue tirar dele uma insegurança tamanha que faz ele, vascaíno doente, negar seu próprio time para me vigiar.
- Como assim - a voz rouca mais uma vez se alterou - ele te vigia?
- Acredito que sim, e fazendo isso se coloca ainda mais inseguro, mais tolo, mais infantil, mais ciumento do que eu imaginei ser possível!
- Você está enganada. O Ari te adora, confia em você, se mostra infantil para brincar consigo, é tolo para fazer você rir e não tem ciúme nenhum de você.
- Espero que você esteja certo.
E mudando de voz chamei pedindo:
- Marcio! Leve-me para casa que esse mascarado está me seguindo e forçando assunto comigo e estou me sentindo insegura ao lado dele!
Marcio impôs sua masculinidade, se colocou entre eu e o gaiato fantasiado, em pleno meio-dia, de uma sexta-feira, próximo a minha escola. O mascarado "titubeou". Sua indecisão o manteve inerte e como ele não se afastava Marcio me abraçou com segurança pelos ombros, me afastou dele e três passos depois deixou o braço, num carinho, escorregar para minha cintura levando-me automaticamente a também abraçar sua cintura.
Uma voz reveladora chama meu nome:
- Ana, sou eu, Ari. Sabia que você me traia e quis ter a certeza. Agora não tem como negar!
Aquelas palavras interromperam meus passos e fez com que eu e Marcio, ao mesmo tempo, nos voltássemos na direção do mascarado. Lá estava Ari desmascarado pela terceira ou quarta vez durante toda aquela cena. Sem qualquer dor ou remorso sorri para ele e decretei:
- Você preferiu seu ciúme, fique com ele!
Ainda com o sorriso nos lábios, como louca, num impulso, me aventurei: abracei Marcio pelo pescoço e me joguei em seus lábios que me receberam ardorosamente (ainda bem!) num beijo espetacularmente delicioso para mim e também espetacular para o Ari e para quem por ele fora atraído para os acontecimentos que se desenrolavam. Fomos até aplaudidos!
Mais um ciumento preferiu a solidão de seu ciúme a maravilha de um amor repleto de segurança, confiança e respeito. E eu descobri que nem sempre quem troca instantaneamente de namorado o faz por ser volúvel, às vezes é por ser racional e encontrar uma brecha emocional!
O melhor companheiro para se amar às vezes está tão perto que nem percebemos.


Borges C.
(Toca de Lobo)
Contador de Histórias
borges.rj@outlook.com

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Assalto com tradução


- Perdeu, perdeu, e não adianta abanar nem balançar a cadeia que não vou dar um boi nem dar mala prá ninguém. 
- Tenho que arrumar um pichulé maneiro e vou mandar ver  com cês mermo e trata de ficar quetinho preu não meter bronca  que vai sê de pior.
 
O casal perplexo diante daquele jovem, de bermuda surrada e camiseta de malha com estampado contra a violência, tenta argumentar na ânsia de entender o que ele quer.

- Fique tranquilo, o que você deseja? – falou o homem.
 
- Muita calma, nada de violência! – com a voz abalada a mulher também se manifestou.
 
- Cês tão abonado, pode abrir, quero fazer meu ganho sem estarro, passa o gancho, os dolar, sem esconde esconde; e nada de ficar me tirando.

- Em pleno meio-dia, no centro da cidade, você não tem medo de ser pego pela polía expondo assim uma arma na vista de todos.

- Tá limpo, meu cumparsa tá sacando o pedaço e se pintar samango pego o beco. Agora deixa de fita que tô fissurado e se tu demora faço tua feinha.
 
O marginal falou apontando a arma para a mulher.
 
O homem, perdendo a calma e falando alto, encara o assaltante de frente, falando de igual para igual:
 
- Ô meu, tu vem ferrado pular um majú com a majura, entrega teu olheiro e se mete no meio de mais de dez dos meus óme boiando, aqui não tem olho de vidro e como diria meu pai, têje preso, pro chão!


Traduzindo:

- É um assalto, e não adianta fazer sinais tentando se comunicar nem revolta, nem gritaria que não vou liberar nem dispensar ninguém.
- Tenho que conseguir dinheiro e vou assaltar  vocês mesmo, é melhor ficar quietinho para eu não me exaltar ainda mais que vai ser de pior.

O casal perplexo diante daquele jovem, de bermuda surrada e camiseta de malha com estampado contra a violência, tenta argumentar na ânsia de entender o que ele quer.

- Fique tranquilo, o que você deseja? – falou o homem.

- Muita calma, nada de violência! – com a voz abalada a mulher também se manifestou.

- Vocês têm dinheiro, pode confessar, quero assaltar sem nenhum confronto violento, passa o celular, dinheiro, sem tramas; e nada de olhar para mim.

- Em pleno meio-dia, no centro da cidade, você não tem medo de ser pego pela polícia expondo assim uma arma na vista de todos.

- Está tudo planejado, tenho um cúmplice observando a área e caso a polícia apareça vou embora sem estardalhaços. Agora deixa de demora que eu estou precisando usar droga e se você demorar mato a sua companheira.

O marginal falou apontando a arma para a mulher.

O homem, perdendo a calma e falando alto, encara o assaltante de frente, falando de igual para igual:

- Cidadão, você está armado tentando assaltar um delegado de polícia e a delegada de plantão, já denunciou seu cúmplice e está cercado por mais de 10 policiais sem nem perceber, aqui não tem nenhum novato e como diria meu pai:

- Você está recebendo ordem de prisão. Deite-se para a sua própria segurança.

sites consultados:

sábado, 3 de setembro de 2011

O Funk e minha paixão - ou - De periguete à peguete!


Assim que cheguei ao baile meus olhos cruzaram com o seu olhar, seu sorriso meigo e deu para perceber muitas amigas em volta. Estava vindo de um relacionamento conturbado de onde saí magoado e machucado. Meu ego e meu amor próprio estavam arranhados e todas as mulheres eram para mim iguais, e aquela na certa era só mais uma periguete.
O funk estava quente, o baile cheio de cachorras, as periguetes estavam babando gulosas e eu me estranhava, ninguém me apetecia, ninguém conseguia, mesmo se me agarrasse ou tentasse me beijar, mexer realmente comigo.
Será que eu ainda estava apaixonado? Não, aquela mulher eu não queria mais. Querer quem te faz sofrer é masoquismo, é não me amar.
Esbarro mais uma vez com o bando de periguetes. A menina fingiu não me ver, estava triste em meio a tantos risos, danças e alegrias. Quanto mais ela evitava olhar para mim, mais eu percebia seus olhares furtivos. Estava tão concentrado neste jogo que me assustei quando Alice me puxou para dançar com ela.
Em meio aquele batidão, aos gritos, ela conseguiu dizer que a Márcia, lá da escola, estava a fim de mim e que eu esnobara a menina deixando-a deslocada em pleno baile.
Claro que imediatamente quis saber quem era a Márcia. Alice me disse que pela primeira vez ela tomara coragem de ir a um baile funk e só foi por que ela garantira que eu estaria lá.
Animado, eu estava precisando de alguém assim, quis ser apresentado a “minha Marcinha” como eu, já entusiasmado com a idéia, a chamava.
Quando fiquei frente a frente com ela, a menina do sorriso meigo que rotulei de periguete (por conta de minha “ex”), experimentei sensações nunca imaginadas:
Meu sorriso foi um sorriso sem graça de pura vergonha;
Meu coração superava as batidas do pancadão a tal ponto que temia que ela percebesse;
A mão que estendi para cumprimentá-la estava úmida de suor;
Meu rosto arrepiou-se inteiro quando ela puxando minha mão conseguiu beijar minha face em um dos lados se contento, de frente a mim, temerosa de beijar o outro lado e ser rechaçada tal a minha inanição.
Com aquela boca tão perto da minha, com um pequeno e lindo sorriso provocando-lhe uma covinha no rosto – sorriso que esmaecia diante da minha hesitação. Com minhas pedras tremendo. Fui salvo por Alice que me tocando num leve empurrão as costas gritou bem alto:
- Beija logo! Agente já percebeu que você se apaixonou.
Nunca antes um beijo me realizara tanto, nunca um simples beijo havia despertado aquele prazer especial que me derretia por dentro e me levava a me entregar sem máscaras e sem reservas.
Eu havia encontrado a minha metade. Minha princesa fora desencantada! Naquele segundo descobri que estava amando!

Borges C.
(Toca de Lobo)
Contador de Histórias

borges.rj@outlook.com

Ela tinha 14 anos e quase me matou!


Chegada a hora da terapia de grupo começar o grande engarrafamento da cidade, sob chuvas torrenciais, só permitira a chegada de três participantes.
O terapeuta consultou a todos e resolveram iniciar os trabalhos e foi proposta uma nova dinâmica para aquele dia: Escolha seu terapeuta!
A proposta era cada um dos participantes escolherem um dos outros dois e, como se ele fosse o terapeuta, apresentar seu problema de forma resumida, apresentando-se inicialmente. O terapeuta escolhido não se manifestaria, apenas ouviria calado!
Marcelo se aventurou a ser o primeiro e agitado, bastante inseguro com o formato proposto escolheu Afonso e iniciou sua exposição:
- Me chamo Marcelo, sou médico, cardiologista, tenho 40 anos, adoro e já perdoei meus pais.
- Aqui devo esclarecer que tenho uma mãe e dois pais. O de fato e o de direito. O de fato me criou desde os primeiros meses de vida. O de direito foi o meu pai biológico e só assumiu a paternidade depois que quase morri com uma inexplicável infecção aos 11 anos.
- Estou aqui porque minha mãe, sem qualquer preparo para lidar com assunto tão sério, me teve aos 14 anos.
- E não foi só isso. Meu pai, de 22 anos na época, sumiu do mapa assim que soube da gravidez. Covarde nem assumiu a paternidade nem avisou que não iria assumir, simplesmente desapareceu deixando minha mãe sozinha com uma triste realidade para quem tem pais severos e apenas 14 anos de idade. – Marcelo suava já que lembrar esses fatos sempre o abalava. Corajosamente continuou.
- Pelo que soube ela só tomou consciência da gravidez quando o atraso da menstruação estava maior do que 30 dias e as colegas orientaram a ela sobre essa possibilidade e compraram um teste de farmácia onde se confirmou minha presença em seu corpo.
- Ela imediatamente procurou meu pai, fizeram sexo mais uma vez – pela última vez - e ela só voltou a vê-lo quando ela já estava casada e eu estava com 3 anos de idade. A notícia o fez sumir de vez do bairro. Como ele morava longe e ia de ônibus encontrar com ela, minha mãe não sabia nem onde ele morava.
- Desesperada e abandonada pelo namorado, com medo imenso de contar a seus pais, aventurou-se a fazer de tudo para abortar aquele filho que queria nascer fora de hora.
Chorando ele continuava seu relato:
- Foram chás, pulos de diversas alturas, introdução vaginal de diversas porcarias e isso resultou, para ela, em um sério problema de saúde e ela acabou internada. Foi no hospital que meus avós tomaram ciência de minha existência.
- Minha avó apoiou sua filha imediatamente e isso provocou a separação do casal por mais de uma semana. Pelo que se sabe meu avô vivia enchendo a cara no centro da cidade e mendigando até que um padre ouviu sua história e o fez retornar à família arrependido e chorando pela primeira vez diante da esposa e filha.
- Minha mãe viu todos seus amigos e amigas se afastarem. Só duas colegas e um colega continuaram a visitá-la e a falar com ela normalmente. O resto fingia amizade, mas minha mãe percebia o preconceito contra sua gravidez em todos eles.
Marcelo já controlara o choro, mas as lágrimas insistiam em correr pela sua face. A voz estava entrecortada e ele perdia o fôlego, mas continuava.
- Mesmo com apoio de meus avós minha mãe não suportava aquele clima e o peso em torno dela e sua gravidez. Só podia sair de casa para ir à escola. Ainda assim continuou tentando abortar o filho indesejado – eu!
- Um dia na saída da escola conheceu uma mulher que se apresentou como minha avó. Ou melhor, como a mãe do meu pai. Deu um dinheiro e um endereço na mão dela e disse que ali ela conseguiria fazer um aborto garantido e seguro. Ninguém, até aquele momento, realmente me desejava, nem como filho, nem como neto. No dia seguinte eu ia virar um aborto, essa era a minha sentença.
- Minha mãe conta que colocou uma camiseta de malha por baixo da blusa da escola, uma saia na pasta e na casa do seu único colega recebeu apoio, trocou de roupa e ele lhe fez companhia.
- Ele me conta que seguiram ambos calados, abraçados, pegaram o ônibus, desceram em frente a uma casa mal conservada que precisava muito mais do que apenas uma pintura, e juntos e ainda abraçados entraram numa sala na penumbra.
- As janelas permaneciam fechadas e com cortinas e a fraca lâmpada iluminava apenas a mesa onde um homem grosseiramente atendia as pacientes dando-lhes um número, o preço e mandando aguardar a enfermeira a quem deveriam pagar antes de entrar.
- Foi naquele ambiente que meu pai de fato declarou seu amor a minha mãe, e, para meu regozijo, foi o primeiro a dizer que me desejava como se filho dele fosse e pediu que ela desistisse de tudo.
- Justo nesta hora surge uma senhora de uns 50 anos, com um jaleco branco manchado e mal lavado, um cigarro preso ao canto da boca e chama o número 5 – o de minha mãe.
- Conta, meu pai, que minha mãe levantou-se seguiu em direção aquela mulher procurando o dinheiro que minha avó paterna lhe dera e que ele conseguiu interromper-lhe os passos e roubou seu primeiro beijo.
- Ele diz que estava inseguro, nunca beijara ninguém, mas a urgência não lhe permitia hesitar.
- Acabado o beijo ele disse à mulher que minha mãe não iria fazer aborto nenhum e o homem da mesa levantou-se, enorme e gordo, e informou que não era assim não. Mesmo sem fazer o aborto, agora, ele teria que ser pago. Pegou meu pai e jogou, com facilidade, ele porta a fora.
- Sempre que ele conta isso chora como eu estou chorando. Ele diz que foram os mais longos e infernais minutos da vida dele. Ele renasceu quando minha mãe chorando se abraçou com ele e disse que pagou mas não fez, não teve coragem de fazer o aborto.
- Soube disso apenas aos 11 anos. Acredito que por isso me empenhei em ser médico, para salvar vidas. Em agradecimento ao meu pai adotivo e eternamente meu verdadeiro pai, que salvou a minha vida no último momento e sobrepujou preconceitos e todo o tipo de escárnio e manifestações agressivas dos que se diziam seus amigos, para assumir como seu, aos 15 anos, o filho de outro homem.
- Acho que é por isso que hoje estou aqui. Por hoje é só. Quero agora só ouvir e esquecer, mais uma vez, que quase fui um aborto e tudo que contei aqui. – disse Marcelo agora enxugando as lágrimas em um lenço e tentando rir mostrando desajeitadamente os dentes por trás do lábios trêmulos.

Borges C.
(Toca de Lobo)
Contador de Histórias

borges.rj@outlook.com

Professor é professor!


Foi o maior alvoroço por toda sala, trabalho em grupo era sempre chato, mas comum. Agora a professora montar os grupos! Isso era demais! A ansiedade tomava conta de todos.
No burburinho o que mais se ouvia eram comentários de que com fulano, com beltrano ou, com sicrano[1] “eu não”... Raros eram os “eu quero você comigo”, “vai ser bom ficarmos juntos”, - imperava o negativo e suas causas, digam-se de passagem, todas medíocres.
Professor é professor e “tia” Glória, apaixonada por História do Brasil, queria mais do que fazer seus alunos se apaixonarem pelos fatos de nossa terra, queria ensiná-los a trabalhar em equipe quaisquer que fossem as circunstâncias.
O tema já fora escolhido: A Viagem de Cabral e ela dera um mês de prazo, mas queria todos os detalhes, desde o planejamento até a volta à Portugal.
Ela devia estar como diziam na época dela “com as cachorras” – hoje o significado seria diferente, pois o funk introduziu cachorra como um pejorativo inaceitável para as meninas que freqüentam seus bailes – já que além de determinar os grupos queria um resumo dos avanços dos grupos em relatório todas as sextas-feiras.
Os alunos quase enlouqueceram:
- Relatórios?!?!?!?!
A forma descompassada que eles fizeram uma mesma pergunta fazia lembrar um longo “super eco” repetido inúmeras vezes.
Paciente, como sempre, a professora passou a explicar, enquanto escrevia no quadro, como desejava o trabalho ainda antes de relacionar os 5 grupos de 6 pessoas cada.
1ª Semana: Relatório de planejamento com distribuição de tarefas
E explicou que o grupo de seis pessoas discutiria e decidiria quem iria fazer o que no trabalho.
Quem gosta de pesquisar livros e ir a biblioteca ficava com a pesquisa bibliográfica e faria as fichas dos livros que continham o assunto e suas recomendações;
Quem gosta de pesquisa virtual faria um levantamento na internet sobre o tema, debates e controvérsias existentes entre historiadores, imagens e ilustrações e faria ficha dos sites mais importantes e suas recomendações;
Quem gosta de apresentar e falar sobre o trabalho planejaria os métodos a serem utilizados para sua apresentação descrevendo-os em fichas com a metodologia e suas observações.
As três fichas deveriam ser entregues na primeira sexta-feira.
2ª Semana: Relatório contendo cópia e impressão de todo o tema já lido e pesquisado e a organização planejada para sua apresentação
3ª Semana: Entrega do trabalho semi-pronto para orientações e correções na forma mais simples possível. Cada grupo faria com a professora uma reunião de no máximo 10 minutos e já com a pauta de discussão definida.
4ª e 5ª Semana – Apresentação do trabalho em sala.
IMPORTANTE: Os grupos poderão ser premiados com um passeio!
Foi difícil para “tia” Glória conter a turma desesperada que ao mesmo tempo falavam entre si e com ela gritando perguntas, dúvidas e receios. Ela sabia o quanto estava inovando e o seus objetivos de terminar com algumas escaramuças entre colegas de sala e sabendo que tudo ainda piorava, sem dizer qualquer palavra para contê-los passou a simplesmente escrever no quadro os grupos de alunos.
Abaixo do nº do grupo ela escrevia a palavra “COR:”. Quando a turma percebeu foram retornando as suas carteiras para anotarem seus grupos e Glória sabia que o burburinho ainda iria piorar.
Quando o silêncio já dominava a sala com todos anotando o seu e os grupos rivais – ali tudo é disputa – ela pediu que já fossem decidindo quem iria escolher a cor do grupo e que apenas um aluno de cada grupo poderia apresentar sugestões e negociar sua cor com os demais grupos.
O burburinho voltou, mas esse era aceitável em volume, eles cochichavam entre si de forma que os outros grupos não os ouvissem e sem perceber foram repartindo a sala e, quando o último nome foi lançado no quadro, a sala já estava praticamente dividida em cinco bolinhos de seis pessoas. Os grupos formaram-se, começavam, apesar das diferenças a se integrarem e os alunos nem perceberam.
- Quem vai defender a cor do time de cada um de vocês?
A palavra time encaixou-se consolidando os grupos. Agora formavam um time, como o flamengo, o Vasco... Agora eram: time, torcida, grupos fechados, adversários!
Com raras exceções estavam já agrupados e achando divertido aquele confronto. Já discutiam todo o trabalho e Glória começou a disputa pela cor. Para facilitar ela escolheu 7 de 5 cores possíveis – professora intrometida, alguns pensaram: queriam usar cores exóticas ou de seus times – vermelho, azul, amarela, verde, laranja, rosa e roxo.
No quadro ela escreveu o nome dos alunos escolhidos para definir as cores e em pouco tempo, com as cores sacramentadas, ela encerrou a aula daquele dia deixando escolhidos aqueles alunos como líderes dos grupos. Eles seriam os únicos a se reportar diretamente com ela sobre dúvidas e demais assuntos de consenso do grupo.
Glória hoje, nostálgica, olha sua nova turma e avalia o sucesso daquela trabalhosa iniciativa. O seu trabalho com os alunos ficou mais fácil, eles passaram a se interessar mais por História do Brasil. Alguns de seus alunos escolheram esse ramo para sua profissionalização. A turma acabou por integrar-se totalmente no passeio à Quinta da Boa Vista onde, independente de notas, todos foram.
Mas o que mais marcou para ela, de forma muito carinhosa, é ver, já perto de se aposentar, em sua turma, os filhos de dois casais formados naquela aventura escolar.
Professor é professor e “tia” Glória, contendo as lágrimas, entende bem o por quê.



[1] Maria Tereza de Queiroz, responde no site www.lainsignia.org, que Fulano vem do árabe fulan(um certo indivíduo, uma determinada pessoa).Beltrano viria de Beltrão, sendo modificado para rimar com Fulano.Beltrão seria um nome muito usado nos romances de cavalaria para designar uma pessoa indeterminada.Cicrano(ou siclano)
Sicrano ou siclano não se sabe com certeza também.Talvez a desfiguração de algum nome próprio ou tenha vindo do idioma espanhol:zutano,citano, que quer dizer conhecido.
Maria Tereza de Queiroz Piacentini é catarinense, professora de Inglês e Português, revisora de textos e redatora de ... É autora dos livros Só Vírgula - Método fácil em 20 lições (UFSCar, 2. ed. 2003, 143 p.) e Só Palavras Compostas ... (citação de Aristides Coelho Neto)
Fonte(s):
www.lainsignia.org e http://books.google.com.

Borges C.
(Toca de Lobo)
Contador de Histórias

borges.rj@outlook.com

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Aprendendo a dizer não!


http://oglobo.globo.com/fotos/2009/09/04/04_MHG_gatodebotas.jpg
"- Já disse que não, não insista!" 

 Os homens são tão tolos que têm dificuldade para dizer não. Todos sabem que esse procedimento agrada, e muito, aos que se julgam espertos. Enquanto titubeamos para negar as coisas, eles, os espertos, não pestanejam para alcançar vantagens sobre nós. Veja só:
 Carlinhos estava completando cinco aninhos e a festa reunira toda a família de Carlos e Beth. Era um sábado agradável e como era festa de criança começara as comemorações às 17h, mas só atingiu o auge às 18h e logo estariam partindo o bolo uma vez que às 19h os pais dos amiguinhos de Carlinhos viriam buscá-los.
 Para os adultos a festa ficou boa mesmo quando os convidados infantis e os parentes mais afastados se foram. Ficou o grupo habitual com exceção de Raul, primo de Beth, que morava no interior do estado. Mas ele era um dos mais divertidos convidados. Extrovertido e brincalhão tornara-se o centro das atenções com suas piadas e implicâncias humorísticas.
 Não sei vocês já perceberam, mas grande parte dos humoristas precisa de um "cristo". É isso mesmo, ela pega um dos participantes, coloca na berlinda e vai constrangendo-o enquanto arranca risos dos outros que, insensíveis, fingem não perceber o desconforto imposto ao eleito. Qualquer detalhe serve ao "humorista" para fazer rir sua platéia enquanto ressalta a gordura, magreza, feiúra, altura (ou falta dela) ou qualquer outro motivo ou defeito que o "eleito" para o "sacrifício" apresente.
 Raul era um destes humoristas e esticou a noite e a festa até a madrugada. Quando o penúltimo parente se foi, sem qualquer constrangimento, sentou-se ao lado de Beth e começou sua ladainha:
- Prima, estou desesperado. Fui demitido há 2 meses e até agora não consegui nenhum emprego. Em Cantagalo não existe qualquer oportunidade. Posso me hospedar aqui por uns dias para buscar um emprego aqui na capital?
 Beth ficou constrangida diante daquele pedido. Em imperceptíveis instantes conseguiu avaliar toda situação. A casa era pequena. Com a chegada do filho o único cômodo grande do imóvel de sala, quarto e cozinho fora sacrificado e um canto da sala fora transformado em quarto do filho deixando a sala mínima. O quintal era grande mas a casa era alugada e ela não podia fazer puxadinhos...
- Raul, vou ter que conversar com o Carlos e depois te dou uma resposta.
- Depois como? Eu nem tenho dinheiro para ir embora!
 Mais uma vez os pensamentos se agigantaram e aceleraram na cabeça de Beth. Estava diante de um sério impasse. A festa havia exigido gastos indesejáveis, mas indispensáveis. O orçamento estava tão quebrado que até o início do mês seguinte ia ser um transtorno econômico para Carlos conciliar os gastos de transporte e alimentação. Não ia ter coragem para conversar com o marido àquela hora e não tinha dinheiro para poder mandar, educadamente, o Raul embora. Acatou. Sentia-se usada, forçada a acatar aquela presença despropositada e fora de época, mas não via saída.
 Carlos, estupefato, viu Beth pegar travesseiro e lençol e disponibilizar para Raul no sofá da sala. Nada comentou, mas ela conhecia seus olhares melhor do que ninguém e sabia que teria problemas maiores ainda naquela madrugada.
 Todos estavam tomados pelo sono e pelo cansaço provocado pela festa e ela tentou fugir do marido tomando um banho demorado.
 Estava a 10 minutos no banho e o Raul entrou no banheiro e levantando a tampa começou a se utilizar do vaso sanitário sem ligar para sua presença dentro do box com vidro transparente.
 Beth morava numa casa simples, de um casal com filho ainda pequeno e o detalhe da porta não estar trancando não incomodava a ninguém. O vidro fumê para o box era quase o dobro do preço. E isso criou as condições para aquele inusitado fato.
 Não bastasse isso Raul, enquanto urinava com o short arriado até os joelhos, elogiava a conservação de seu corpo e a beleza que ele alcançara agora que ela era uma balzaquiana. Melhor do que na sua infância e juventude.
 Claro que aquele raro vozerio másculo em plena madrugada despertou o já irritado Carlos que a tudo escutando fez questão de, pela sua presença na porta do banheiro, registrar que estava presente e atento aos fatos que se desenrolavam em sua casa.
 Raul se lixou para o que ele pudesse estar pensando e balançando sua masculinidade no afã de retirar-lhe os pequenos pingos restantes começou a, desacanhadamente, conversar com Carlos.
- Primo, a Beth já te contou que vou ficar aqui por uns dias até conseguir um emprego? – e sem permitir se deixar interromper, se recompôs e foi saindo com grande naturalidade do banheiro e voltando para a sala enquanto matraqueava em plena madrugada:
– Em Cantagalo já tentei de tudo sem qualquer sucesso e por isso vim para a capital. Nesse enorme Rio de Janeiro emprego é o que não deve faltar, acho que consigo um muito bem remunerado ainda esta semana. - E prosseguiu sem qualquer constrangimento.
- Já amanhã começo a procurar um pelos jornais para na segunda-feira, se Deus quiser, estar já empregado!
- Me passa a toalha Carlos. – pediu Beth.
- Porque o acanhamento? O vidro é transparente e seu primo já mostrou conhecer bem e ter reparado detalhadamente seu corpo enquanto mijava. Eu vou é me deitar já que nem na sala vou poder dormir.
 De cara amarrada foi deitar e assim não viu que Raul voltou ao banheiro e enquanto Beth tentava esconder na toalha seu corpo já desvendado; ele ria e perguntava baixinho:
- Por que será que ele ficou tão irritado? Será que ele quer esse corpo maravilhoso só para ele?
 Raul não esperou respostas, rápido como entrara saiu do banheiro, rindo baixinho e se recolheu em seu sofá apagando a luz.
 Noite mal dormida, muita discussão e a decisão para que Beth se livrasse do primo ainda no domingo. Ambos concordaram e a ela – prima – cabia tal façanha.
 Pela manhã Raul, só de short, deixando a sala uma bagunça, entra na cozinha onde o casal toma seu café da manhã, com Beth recatadamente composta e pergunta, descaradamente ao Carlos:
- E ai primo? Dormiu bem? Já comprou os principais jornais? Tenho que ler os classificados para achar um bom emprego, mas não tenho sequer um centavo.
 O casal trocou olhares e a cumplicidade deles era tanta que apenas pelo olhar Carlos perguntava a Beth como seu primo iria embora, se ele é que tinha, além de comprar os jornais, ainda que pagar a passagem do intrometido.
 Acanhada Beth abaixou a cabeça. Enquanto Carlos se levantava e Raul ocupava seu lugar pedindo que ela colocasse seu café da manhã. Era abuso demais e Carlos estava cada vez mais irritado.
 Assim que Carlos fechou a porta do quarto atrás de si Raul levantou-se cautelosamente e sem qualquer ruído abraçou sua prima por trás beijando-lhe o pescoço. Quando ela se volta para contestar aqueles atos ele tenta roubar-lhe um beijo na boca e Carlinhos, da porta da cozinha, a tudo assiste e assusta aos dois com sua pergunta:
- Tio, você também namora a minha mãe?
 Desconcertado o “tio” ainda tenta fazer piada com o pijama de bichinhos do sobrinho.
- Esse bichinhos vão morder você à noite e...
- SAIA AGORA! – Interrompeu Beth.
 O olhar espantado de Raul se transformou em um olhar de coitadinho, de arrependido e de pidão irresistível. (Que olhar é esse? É o famoso olhar do "gato de botas", no filme Shrek).
 Breve silêncio e um grito ainda mais alto:
- AGORA!
 Carlos, que estava em seu quarto deixando a “prima” resolver com Raul resolveu intervir em apoio à esposa e saiu do quarto calado; e calado foi até a cozinha forçando sua passagem deslocando Raul que estava no meio do seu caminho.
 Raul agora, vendo desmoronar já consolidada sua posição de coitadinho, apela às lágrimas e aos resmungos sobre as infelicidades de toda sua vida.
 Beth já estava solidarizando-se com Raul, mas Carlos estava decidido.
- Que parte o “saia agora” você não entendeu?
 Do choro comovente à revolta foi um instante apenas.
- Vocês vão jogar-me na rua sabendo que não tenho um centavo sequer?
- Essa deveria ter sido sua primeira preocupação, antes mesmo de vir para uma festa. Antes de decidir por nós que iríamos ajudá-lo incondicionalmente. Você poderia nos ter consultado com um simples telefonema.
- Vocês diriam que não, seria um rotundo NÃO! Vocês sempre foram muito mesquinhos e egoístas.
Carlos não pretendia cair na armadilha de Raul e ficar discutindo o que já estava decidido.
- Se você não entendeu posso explicar de muitas formas o “saia daqui agora”, e você não gostaria de nenhuma.
Raul estava perdido. Resolveu ir embora, mas não queria sair por baixo. Arrumou-se rapidamente e antes de sair declarou taxativamente, já na porta:
- Vocês acham mesmo que eu sou um idiota? Que iria confiar em vocês? Guardei no meu sapato R$ 500,00 para caso vocês fossem ingratos com a família...
- Saia agora, não vou repetir, vou agir.
Surpreso com a interrupção inesperada Raul saiu gritando impropérios tentando atrair, com acusações diversas, a atenção de toda vizinhança, mas correu assim que em uma atitude decidida Celso saiu para a calçada.

Conclusões ficam com você, leitor...

Mas não pense que poderia ser diferente com você. O esperto, o abusado, está em toda a família e sempre é “o coitadinho”!

Borges C.
(Toca de Lobo)
Contador de Histórias

borges.rj@outlook.com

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Eles não têm juízo!


- Quando estou calado, com olhar perdido no tempo e no espaço, não adianta falar comigo antes de me chamar. Você já me conhece bem e isso não é novidade para você. Por que então está me questionando? Quer conhecer, ler, adivinhar meu pensamento?
- Não é isso! Não mude os fatos! Estávamos conversando. Você se calou. Esperei qualquer manifestação sua. Já havia passado mais de cinco minutos de silêncio. Estava claro que você estava era querendo fugir do assunto.
- Fugir de quê?
- Da notícia que lhe dei. Mas repito. Você vai ser pai!
- Ah! Isso? Isso eu sei. Eu vou ser pai, todo homem um dia vai ser. Você é mulher e um dia também vai ser mãe. Espero, sinceramente que você esteja preparada quando isso acontecer.
- Então vamos ter que estar pronto, nós dois, em menos de oito meses. Nosso filho, nas minhas contas, nasce em janeiro.
- Como? Você é louca? Eu sei que já namoramos há mais de três anos mas acabei de fazer dezoito anos e ainda nem consegui emprego e você, se tiver um neném em janeiro, ainda não vai ter nem dezesseis, seu aniversário é em fevereiro.
- Você é idiota ou o que? Vai continuar fugindo? Fazemos sexo desde meu aniversário de quinze anos e você nunca quis usar camisinha sempre alegando que só transava comigo e não tinha risco de pegarmos qualquer doença. E não pegamos mesmo. Pegamos uma gravidez. Estou grávida. O neném nasce em janeiro, você entendeu agora?
- Você vai ser mãe?
- Ora vivas, você entendeu finalmente!
- E quem é o pai? Seus pais já sabem?
- Você endoideceu? “Tá piripaqueando” ou querendo fugir da paternidade?
- Esse filho é meu? Mas não pode ser meu! Não estou pronto! Não estou preparado! Eu não vou saber ser pai. Quem vai me ensinar? O que eu devo fazer?
- Primeiro, ao invés de só pensar em você, provar que me ama e me apoiar nessa hora, estou com medo, muito medo!
- Medo? Medo! Medo de que?
- Medo da reação dos meus pais. Das mudanças que minha vida vai sofrer. Medo do parto. O neném já está aqui dentro, não tem mais jeito. Ele vai crescer dentro de mim. Vou ficar gorda, enorme, feia - até ai tudo bem! Mas depois! E depois? Ele vai ter que sair, vai ter que nascer!
- Você já viu o tamanho da cabeça, do corpo de um neném? Você lembra o tamanho do meu corpo, do meu sexo? Como aquilo tudo vai sair de um buraquinho tão pequenininho?
- Nem pensa nisso... Não, não, isso não vai acontecer nem com você nem comigo.
- Com você não vai mesmo, o neném está na minha barriga e não na sua! E... Se fosse na sua ia ter que sair pelo, pelo...

Ela acaba rindo, e cada vez mais se entusiasma com seu riso, gargalha francamente e cada vez mais forte e mais solta até que desaba num pranto que vinha contento desde que leu o resultado do exame de gravidez.
A realidade se impõe inexorável. Tudo acabou, tudo começa, tudo é novo, tudo é caos, nada tem sentido, nada faz sentido, nada permite planos, planejamentos, visão de futuro. Nem o próximo segundo pode ser definido por eles que juntos, abraçados, riram e agora choram.
Finalmente ele caiu em si e aceitou a realidade nua e crua que se impunha para ambos.
Os dois chorando e ele finalmente rompe o silêncio.

- Eu te amo. Amo muito e... E esse... E o neném é o fruto desse nosso amor!
Breve silêncio, e ele continua:
- Não queria ver você envolvida neste sacrifício, nas dores que vai sentir, nas mudanças hormonais e corporais que vão acontecer nos próximos meses, mas já estava querendo estar casado com você. Vai ser ótimo ver a carinha do nosso filhinho. Ou será filhinha? Vamos ter que escolher um nome!

As palavras dele caem como um bálsamo no espírito dela e a envolve no mesmo estado de euforia. A sensação da notícia agora contrastando com tudo que sentira até aquele momento. Estavam conscientizando-se do milagre da procriação, da preservação da espécie.
Ambos fixam o olhar na barriga de sempre, sem qualquer alteração, mas que acariciam juntos e recomeçam o diálogo num outro tom mais romântico. Eram cúmplices, comparsas, parceiros, confidentes, amantes e só disso lembravam agora com a coroação daquele lindo amor.
- Eu gostaria muito que fosse uma menininha. Ela ficam lindas, podem ser totalmente enfeitadas. Menino é só short e camisinha, um tênis, talvez um chapeuzinho... Nada de fitas, enfeites, penduricalhos, acessórios, penteados. Mas mesmo adorando a idéia de ser uma menina seria ótimo ter um menininho, uma miniatura sua. Nem sei o que desejar!
- Agora não adianta mais. Já está feito e isso já está decidido, você sabe. Estou recordando em alta velocidade todas as aulas que tive sobre o tema e, aqui pra nós, elas não ensinaram absolutamente nada sobre o que estou sentindo agora, nem para a tarefa e responsabilidades que me esperam. Como vou educar um neném se ainda estou sendo educado, criado... Também estou com medo.

Passa um amigo seu. Vê os dois sentados lado a lado, com um resultado de teste de gravidez preso sobre a bolsa. Nota que ambos acariciam a barriga dela. Ele adivinha a "fertilização". Aproxima-se. Dá um desleixado parabéns a você e ao seu amor. E se afasta falando para si mesmo...

- São loucos... Como eles foram deixar isso acontecer? Agora vão passar momentos terríveis junto às famílias dos dois. Talvez, como se gostam, casem.
- Morarão juntos. Em pouco tempo se sentirão presos, escravos do casamento, do filho. Vai faltar grana e logo, logo, separam-se.

Continua ele falando sozinho pela rua como se louco fosse:
- Certamente a criação do neném vai ficar por conta dos pais dela e ele vai assumir uma pensão que vai achar pesadíssima e que não vai dar nem para fraldas e roupinhas. O resto vai ficar nas costas dos pais dela. São loucos...

Ele, como você também pensava, pensa que isso só acontece com os outros, mas vai ser o próximo!