sábado, 3 de setembro de 2011

Ela tinha 14 anos e quase me matou!


Chegada a hora da terapia de grupo começar o grande engarrafamento da cidade, sob chuvas torrenciais, só permitira a chegada de três participantes.
O terapeuta consultou a todos e resolveram iniciar os trabalhos e foi proposta uma nova dinâmica para aquele dia: Escolha seu terapeuta!
A proposta era cada um dos participantes escolherem um dos outros dois e, como se ele fosse o terapeuta, apresentar seu problema de forma resumida, apresentando-se inicialmente. O terapeuta escolhido não se manifestaria, apenas ouviria calado!
Marcelo se aventurou a ser o primeiro e agitado, bastante inseguro com o formato proposto escolheu Afonso e iniciou sua exposição:
- Me chamo Marcelo, sou médico, cardiologista, tenho 40 anos, adoro e já perdoei meus pais.
- Aqui devo esclarecer que tenho uma mãe e dois pais. O de fato e o de direito. O de fato me criou desde os primeiros meses de vida. O de direito foi o meu pai biológico e só assumiu a paternidade depois que quase morri com uma inexplicável infecção aos 11 anos.
- Estou aqui porque minha mãe, sem qualquer preparo para lidar com assunto tão sério, me teve aos 14 anos.
- E não foi só isso. Meu pai, de 22 anos na época, sumiu do mapa assim que soube da gravidez. Covarde nem assumiu a paternidade nem avisou que não iria assumir, simplesmente desapareceu deixando minha mãe sozinha com uma triste realidade para quem tem pais severos e apenas 14 anos de idade. – Marcelo suava já que lembrar esses fatos sempre o abalava. Corajosamente continuou.
- Pelo que soube ela só tomou consciência da gravidez quando o atraso da menstruação estava maior do que 30 dias e as colegas orientaram a ela sobre essa possibilidade e compraram um teste de farmácia onde se confirmou minha presença em seu corpo.
- Ela imediatamente procurou meu pai, fizeram sexo mais uma vez – pela última vez - e ela só voltou a vê-lo quando ela já estava casada e eu estava com 3 anos de idade. A notícia o fez sumir de vez do bairro. Como ele morava longe e ia de ônibus encontrar com ela, minha mãe não sabia nem onde ele morava.
- Desesperada e abandonada pelo namorado, com medo imenso de contar a seus pais, aventurou-se a fazer de tudo para abortar aquele filho que queria nascer fora de hora.
Chorando ele continuava seu relato:
- Foram chás, pulos de diversas alturas, introdução vaginal de diversas porcarias e isso resultou, para ela, em um sério problema de saúde e ela acabou internada. Foi no hospital que meus avós tomaram ciência de minha existência.
- Minha avó apoiou sua filha imediatamente e isso provocou a separação do casal por mais de uma semana. Pelo que se sabe meu avô vivia enchendo a cara no centro da cidade e mendigando até que um padre ouviu sua história e o fez retornar à família arrependido e chorando pela primeira vez diante da esposa e filha.
- Minha mãe viu todos seus amigos e amigas se afastarem. Só duas colegas e um colega continuaram a visitá-la e a falar com ela normalmente. O resto fingia amizade, mas minha mãe percebia o preconceito contra sua gravidez em todos eles.
Marcelo já controlara o choro, mas as lágrimas insistiam em correr pela sua face. A voz estava entrecortada e ele perdia o fôlego, mas continuava.
- Mesmo com apoio de meus avós minha mãe não suportava aquele clima e o peso em torno dela e sua gravidez. Só podia sair de casa para ir à escola. Ainda assim continuou tentando abortar o filho indesejado – eu!
- Um dia na saída da escola conheceu uma mulher que se apresentou como minha avó. Ou melhor, como a mãe do meu pai. Deu um dinheiro e um endereço na mão dela e disse que ali ela conseguiria fazer um aborto garantido e seguro. Ninguém, até aquele momento, realmente me desejava, nem como filho, nem como neto. No dia seguinte eu ia virar um aborto, essa era a minha sentença.
- Minha mãe conta que colocou uma camiseta de malha por baixo da blusa da escola, uma saia na pasta e na casa do seu único colega recebeu apoio, trocou de roupa e ele lhe fez companhia.
- Ele me conta que seguiram ambos calados, abraçados, pegaram o ônibus, desceram em frente a uma casa mal conservada que precisava muito mais do que apenas uma pintura, e juntos e ainda abraçados entraram numa sala na penumbra.
- As janelas permaneciam fechadas e com cortinas e a fraca lâmpada iluminava apenas a mesa onde um homem grosseiramente atendia as pacientes dando-lhes um número, o preço e mandando aguardar a enfermeira a quem deveriam pagar antes de entrar.
- Foi naquele ambiente que meu pai de fato declarou seu amor a minha mãe, e, para meu regozijo, foi o primeiro a dizer que me desejava como se filho dele fosse e pediu que ela desistisse de tudo.
- Justo nesta hora surge uma senhora de uns 50 anos, com um jaleco branco manchado e mal lavado, um cigarro preso ao canto da boca e chama o número 5 – o de minha mãe.
- Conta, meu pai, que minha mãe levantou-se seguiu em direção aquela mulher procurando o dinheiro que minha avó paterna lhe dera e que ele conseguiu interromper-lhe os passos e roubou seu primeiro beijo.
- Ele diz que estava inseguro, nunca beijara ninguém, mas a urgência não lhe permitia hesitar.
- Acabado o beijo ele disse à mulher que minha mãe não iria fazer aborto nenhum e o homem da mesa levantou-se, enorme e gordo, e informou que não era assim não. Mesmo sem fazer o aborto, agora, ele teria que ser pago. Pegou meu pai e jogou, com facilidade, ele porta a fora.
- Sempre que ele conta isso chora como eu estou chorando. Ele diz que foram os mais longos e infernais minutos da vida dele. Ele renasceu quando minha mãe chorando se abraçou com ele e disse que pagou mas não fez, não teve coragem de fazer o aborto.
- Soube disso apenas aos 11 anos. Acredito que por isso me empenhei em ser médico, para salvar vidas. Em agradecimento ao meu pai adotivo e eternamente meu verdadeiro pai, que salvou a minha vida no último momento e sobrepujou preconceitos e todo o tipo de escárnio e manifestações agressivas dos que se diziam seus amigos, para assumir como seu, aos 15 anos, o filho de outro homem.
- Acho que é por isso que hoje estou aqui. Por hoje é só. Quero agora só ouvir e esquecer, mais uma vez, que quase fui um aborto e tudo que contei aqui. – disse Marcelo agora enxugando as lágrimas em um lenço e tentando rir mostrando desajeitadamente os dentes por trás do lábios trêmulos.

Borges C.
(Toca de Lobo)
Contador de Histórias

borges.rj@outlook.com

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