Serginho fez amizade rápida com Abdul, filho de um
funcionário de seu pai, afinal a diferença de idade não chegava há um ano. Isso
seria fundamental, pois estavam viajando e Abdul sabia falar um pouco da língua
daquele pessoal do Golfo Pérsico.
Estavam em um hotel impressionante, enorme, lindo, muito bem
equipado com salão de jogos, quadras, piscinas. Mas Abdul fizera amizade com
Sadan e explorar aquele país soava para eles como uma grande aventura.
Vestiram-se como as crianças nativas para não chamar a
atenção e verem suas aventuras interrompidas e logo depois do almoço foram
encontrar com o novo amigo. Iriam assistir ao jogo do Barcelona e depois
jogariam bola com os amigos de Sadan.
Quanto mais se conheciam mais Serginho invejava o amigo que
tinha e fazia tudo que queria.
Sadan usava uma camisa e um short do Barcelona, e uma
chuteira. Seu tio lhe dera de presente há alguns dias. E, durante o jogo,
conversavam sempre com a intermediação de Abdul que era a importância em
pessoa. Afinal ele era nosso tradutor e intérprete oficial. Sandan tinha só que
falar um pouco mais devagar.
- Você vai jogar bola com essa roupa? Não tem medo que
estrague?
Sadan rindo responde:
- É a única que eu tenho para jogar bola. Não vou usar nem
minha roupa de sair nem a de trabalhar - falou rindo e cheio de pose o menino
uniformizado como um jogador do Barcelona.
- Mas você já foi à aula hoje? - era Abdul expondo toda sua
curiosidade.
- Escola nada. Eu já trabalho, ganho mais dinheiro que muito
adulto. Estudar para quê. Quero é ter meu próprio negócio como meu tio. -
responde Sadan.
- Meu pai também tem uma empresa - interrompeu Serginho,
achando graça do som de sua fala traduzida por Abdul - Logo eu também vou a ter
a minha e também vou parar de estudar. É muito chato.
- Você trabalha para o seu tio?
- Que nada. Eu trabalho com o meu tio, mas por conta
própria. Ele é um dos meus melhores compradores, mas só trabalha com reciclagem
de metais e não compra os demais produtos recicláveis.
Abdul estava espantado, aquele menino um pouco mais velho
que eles já trabalhava, por conta própria, no ramo da reciclagem preservando o
meio ambiente, mas percebeu que não saberia falar a palavra
"ambiente" e nem sabia se meio ambiente naquela região significava a
mesma coisa que aqui no Brasil. Sendo assim preferiu ficar calado.
A sala onde estavam devia ter mais de 20 crianças e alguns
adultos e quando o Barcelona fez seu primeiro gol a comemoração foi
ensurdecedora. Sadan já até mostrava o que sabia fazer com uma bola - como
jogava bem! - fazia embaixadas jogando a bola para trás e para frente usando a
cabeça, calcanhares, pés, joelhos e peito.
No intervalo a conversa continuou:
- Seus pais brigam muito com você, Sadan?
- Que nada. Meu pai já morreu e eu sou o homem da casa,
sustento minha mãe e meus irmãos e ela me respeita e não briga comigo por nada
desse mundo.
- Então - completou Serginho com tradução simultânea de
Abdul - é por isso que você é assim magrinho.
- Magrinho, eu!? Magrinho nada, eu já uso até as roupas que
eram do meu pai. Agora vocês sim, são bem gordinhos. São até barrigudos.
O comentário de Sadan não agradou, eles insistiam em dizer
que não eram gordos, eram musculosos, e o debate ia acabou em queda de braços
para ver quem era mais forte. Para a sorte dos estrangeiros o jogo recomeçou. O
"magrinho" era forte de doer, ganhou Serginho uma vez, duas vezes
Abdul e se o jogo não começa ia ganhar dos dois de enfiada.
- O Barcelona ganhou por 2 X 0 e o segundo gol foi no final
do jogo deixando a garotada atiçada. Mas não houve qualquer conflito entre os
três amigos. Jogaram pelo mesmo time, ganharam de 5 X 2 e Sadan era, sem
dúvida, o melhor jogador em campo.
Estava tarde, os meninos se despediram e Sadan ensinou a
eles a chegar onde trabalhava. Ficava a quatro quarteirões dali, no fim de uma
rua. Marcaram de se encontrar na hora do almoço. Sadan iria almoçar com eles no
hotel.
A aventura havia sido um sucesso e ninguém nem desconfiara.
Sadan passou a ser o ídolo dos amigos. Já trabalhava por conta própria. Tinha
seu próprio negócio de reciclagem, ninguém brigava ou mandava nele, e nada,
nada de escola!
Na tarde seguinte uma confusão na portaria do hotel chamou a
atenção dos meninos que correndo de curiosidade foram ver o que acontecia.
Sadan, todo sujo, brigava com o porteiro que não queria
deixar um mendigo entrar no hotel. A intervenção de Abdul deixou o porteiro
perplexo. Serginho se manteve em apoio ao amigo, mas calado. Não entendia uma
única palavra de toda aquela discussão.
De repente Serginho teve uma idéia brilhante. Correu ao seu
quarto, fez questão de pegar uma de suas melhores roupas, emprestou ao Sadan
que saiu e em meia hora voltou todo arrumado e de banho tomado sendo admitido
para almoçar no hotel muito a contragosto de todos que ali trabalhavam.
Almoçaram, riram, brincaram por toda parte e já quase no
final do dia, com Serginho quebrando a relutância e fazendo questão que o
importante amigo aceitasse sua roupa como um presente, resolveram ir conhecer o
trabalho de Sadan.
Desceram as quatro quadras, entraram na rua longa e curva e
logo estavam diante de um lixão onde uma fila de caminhões despejava lixo
doméstico, industrial, hospitalar e até sanitário.
Sadan trocou de roupa, colocou o único item ainda bom para
uso, que era sua bota, bem maior do que seu pé, e orgulhoso foi mostrar aos
amigos como era seu trabalho enfiando-se no meio do lixo e dali recolhendo todo
tipo de material vendável.
O ídolo foi por terra sem perceber. Ele estava feliz
mostrando aos amigos como era trabalhador, como se virava sozinho, como
conseguia uns US$ 5,00 por dia para não deixar sua mãe e seus 5 irmãos passarem
fome apesar de viverem na miséria. Para economizar ele só ia para casa na noite
de sexta-feira e domingo bem cedo já estava de volta porque o lixo dos domingos
são mais fatos.
Só então souberam que seu nome era homenagem ao ditador que
conseguira colocar na miséria um povo rico em petróleo. Ele estava no Iraque,
país que historicamente passou por muitas guerras desde a antiguidade e até
nesse nosso novo século!
Borges C.
(Toca de Lobo)
Contador de Histórias
borges.rj@outlook.com